(Luis Fernando Verissímo)
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
De Ressaca
"Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas.
As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava sabendo que no dia
seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso coragem. As novas gerações não
conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores.
A ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum prazer ficará
sem castigo. Cada porre era um desafio ao céu e às suas fúrias. E elas vinham
— Náusea, Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais — às golfadas. Hoje, as
bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconsequentes, literalmente.
Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos os sábados de minha
adolescência como uma luta desigual entre o cubaubre e o meu instinto de autopreservação.
O cuba-libre ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a
tontura e o desejo de morte. Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos 30, "nunca
mais" dura pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo
uma eternidade. Não sei o que o cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando
vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem.
Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um AlkaSeltzer e duas
aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava em casa nem sempre conseguia
completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-
Seltzer e ia borbulhando para a cama, quando encontrava a cama.
Mas os métodos variavam. Por exemplo: Um cálice de azeite antes de começar a
beber — O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber.
Tomar um copo de água entre cada copo de bebida — O difícil era manter a
regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água com a bebida, e em
proporções cada vez menores. Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada
copo de bebida.
Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta — Para ser tomado no dia
seguinte, de jejum. Adicionando vodea, tinha-se um Bloody Mary, mas isto era para mais
tarde um pouco.
O sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde dissolvidas
em querosene — Misturava-se tudo num prato pirex forrado com velhos cartões do sabonete
Eucalol. Embebia-se um algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha de
Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o tempo já teria curado a
ressaca de qualquer maneira.
Uma cerveja bem gelada na hora de acordar — Por alguma razão, o método mais
popular.
Canja — Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada resolveria
qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era para tomar, no entanto. Muitos
mergulhavam o rosto no prato e tinham que ser socorridos às pressas antes do afogamento.
Minha experiência maior é com o cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca,
pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara na noite anterior era
paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com
uísque falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma harpa guarani e
no depósito de instrumentos da boate Catito's em Assunção. A pior ressaca era de gim. Na
manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo tempo. Abria um e
quando abria o outro o primeiro se fechava. Ficava com o ouvido tão aguçado que ouvia até
os sinos da catedral de São Pedro, em Roma.
Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão como
óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava correndo no quarto, escorregava em
você e deslocava a bacia.
Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava alcançar
a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira em cima de você. Era descoberto
na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para
alcançar a umidade. Era deserdado na hora.
Ressaca de cachaça. Você acordava, sem saber como, de pé, num canto do quarto.
Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se caminhava: era pé
ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas
orelhas e uma clavícula no canto. Olhava para cima e via que aquela mancha com uma
forma vagamente humana no teto finalmente se definira. Era o Konrad Adenauer e estava
piscando para você.
Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a
eutanásia.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos
os enigmas do Universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que
aqueles homenzinhos estavam tentanto arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era
alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama
ligeiro.
Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada. No dia
seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a respeito. De vez em quando
alguns dos nossos se encontram e se saúdam em silêncio. Somos como veteranos de velhas
guerras lembrando os companheiros caídos e nosso heroísmo anónimo. Estivemos no
inferno e voltamos, inteiros. Mais ou menos. Um brinde. E um Engov."
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