terça-feira, 4 de março de 2008

À BUNDA

Olha, desta vez você passou das medidas. Só não boto você para fora, agora, porque é a sua cara dar escândalo. Estou cheia de você atrás de mim o tempo todo. Fica se fazendo de fofa, enquanto, pelas minhas costas, chama a atenção de todo mundo para meus defeitos.Você está redondamente enganada se pensa que eu vou me rebaixar ao seu nível – o que vem de baixo não me atinge. Mas faço questão de desancar essa sua pose empinada.Por que nuncaencara as coisas de frente?Fica parecendo quetem algo a esconder. Poracaso, faz algumacoisa que ninguémpode saber? Você é, e sempre foi, um peso na minha existência – cada papel que me fez passar... Diz-se sensível e profunda, mas está sempre voltada para aquilo que já aconteceu. Tenho vergonha de apresentar você às pessoas, sabia?Por que você nunca encara as coisas de frente, bunda? Fica parecendo que, no fundo, tem algo a esconder. Por acaso, faz alguma coisa que ninguém pode saber? O que há por trás de todo esse silêncio?Você diz que está dividida e que eu preciso ver os dois lados da questão. Ora, seja mais firme, deixe de balançar nas suas posições.Longe de mim querer me meter na sua vida privada, mas a impressão que dá é que você não se enxerga. Porque está longe de ter nascido virada para a lua e costuma se comportar como se fosse o centro das atenções.Bunda, você mora de fundos, num lugar abafado. Nunca sai para dar uma volta, nunca toma um sol, nunca respira um ar puro. Vive enfurnada, sem o mínimo contato com a natureza. O máximo que se permite é aparecer numa praia de vez em quando, toda branquela.Não é de admirar que esteja sempre por baixo. Tentei levar você para fazer ginástica, querendo deixar você mais para cima, mas fingiu que não escutou.Saiba que você não é mais aquela, diria até que anda meio caída. E vai ter que rebolar para mexer comigo, de novo, da maneira que mexia.Lembro do tempo em que eu, desbundada, sonhava em ter um pouquinho mais de você. Agora, acho que o que temos já está de bom tamanho. E, pensando bem, é melhor pararmos por aqui antes que uma de nós acabe machucada.Sei que qualquer coisinha deixa você balançada, então não vou expor suas duas faces em público. Mas fique sabendo que, se você aparecer, constrangendo-me diante de outras pessoas, levarei seu caso ao doutor Albuquerque*.Lamento, isso dói mais em mim do que em você, mas você merece o chute que estou lhe dando. Duplamente decepcionada, * A colunista refere-se ao cirurgião plástico Pedro Albuquerque, de São Paulo
(FERNANDA YOUNG)

AO ÓRGÃO RESPONSÁVEL

Caro PênisTenho notado você olhando torto para mim. Às vezes, basta eu chegar e você se levanta. Por acaso, você tem algum problema pendente comigo?O fato de nós estarmos em lados opostos não nos faz inimigos. Ao contrário, guardo um espaço especial para você, dentro de mim, e seria ótimo se pudéssemos nos unir em prol de algumas novas conquistas. Os atritos, como em qualquer relação, são normais e bem-vindos.Você me acusa de ser difícil, mas não conheço personalidade mais instável que a sua. Quando eu quero conversar, você se recolhe. Quando canso de tentar, você se anima. Quando finalmente penso entender aonde você quer chegar, você se coloca numa posição diferente.Sei que a vida talvez lhe pareça mais dura, já que é de você que são cobrados rendimento e desempenho. Mas o mundo não gira em torno da sua existência como você pensa. Diria até que, nas horas mais tensas, você sempre dá um jeito de ficar de fora. Até no momento em que sua participação se faz mais necessária, a continuidade da espécie, você se limita a entrar com metade da matéria-prima e deixa o resto para lá.Dizem que eu tenho inveja de você - mas inveja de quê, afinal? Você, desculpe, está longe de ser bonito. Trabalha num ramo de atividade sem o mínimo charme: a remoção de detritos. Mora num lugar abafado, onde o sol nunca bate. Freqüenta locais escusos, de reputação duvidosa, em busca de um tipo de divertimento que já se encontra à mão, em sua própria casa. E aquele seu melhor amigo, convenhamos, é um saco.Mesmo assim, quero frisar, tenho por você imensa consideração e simpatia. Mais que isso - sempre busquei a sua aprovação de alguma forma, atrás de sinais de que estaria lhe agradando. Você, por sua vez, nem sequer disfarça seu completo egocentrismo. Fazendo-se de sonso e sumindo após satisfazer as suas necessidades.Você se diz sensível, porém jamais se preocupa com o que o outro está sentindo. Quer apenas ocupar o seu espaço e atingir as suas mesmas velhas metas de crescimento. Deveria tentar aumentar suas expectativas, ampliar seus horizontes, investir na sua cultura. Qual foi a última vez que você viu um filme decente?Sei que dificilmente vou conseguir abalar sua enorme auto-estima, mas, sob o meu ponto de vista, você não passa de um solitário, perdido em sonhos impossíveis e cercado por uma situação bastante enrolada. Acha-se o máximo, superextrovertido e revela-se um bobo alegre com pinta de seboso. Um cabisbaixo baixinho carente, o tempo todo em busca de qualquer carinho.Disponho-me a ajudá-lo, colega, caso você reconheça seus defeitos e fraquezas. Posso até te indicar um bom analista. Somente recuso-me a continuar a ser cúmplice na perpetuação de um equívoco.Você não é melhor que ninguém, temos o mesmo tamanho nesta história - de fato, se você cabe em mim, sou necessariamente maior do que você.
(FERNANDA YOUNG)

AO SONO

Ontem, mais uma vez, esperei horas e você não veio. Hoje, passei a manhã inteira irritada por causa disso. Aí, você me chega depois do almoço, sem a menor explicação, como se isso fosse normal. Eu cheia de coisas para fazer e você querendo me levar para tomar um café. Está querendo acabar comigo, é isso?Uma amiga minha me abriu os olhos: nós dois estamos vivendo uma relação doentia. Eu estou me sujeitando aos seus horários e você está desrespeitando os limites. Não é porque eu vou para a cama com você que eu deixei de chefiar o órgão onde você exerce a sua função.Você tem faltado muito e estou cansada disso. Quando não falta, demora para chegar e vem disperso, agitado, não ajudando em nada. Eu preciso de você tranqüilo, cumprindo seu dever, todos os dias, oito horas por dia, igual a todo mundo. Ou não posso garantir o bom funcionamento da nossa unidade.Sono, sinceramente, qualquer probleminha que surge, você some. Tudo serve de desculpa para você não aparecer: uma conta para pagar, uma viagem de negócios, um caso de doença na família. Por mais que eu não queira te prejudicar, não posso agüentar um sono assim, tão inconstante.A partir desta noite, não quero mais nenhuma irregularidade sua. Não estou exigindo que você seja perfeito, mas, na próxima vez que eu tiver de remediar alguma ausência de sua parte, vou tomar medidas extremamente fortes. E não me importam as reações. Desejo uma convivência leve e sadia entre nós, mas prefiro ter você sempre pesado do que sofrer as conseqüências da atual situação.Não posso entender por que você mudou tanto. Lembro das agradáveis noites que passamos juntos - você eventualmente profundo, muitas vezes superficial, mas sempre presente em minha vida. Mesmo durante o dia, você dava um jeito de estar ao meu lado quando eu ficava deprimida, de cuidar de mim quando eu ficava com febre, de aliviar meu stress quando eu trabalhava demais.Agora, quase nunca posso contar com você. Você só aparece quando bem quer e quando eu menos preciso: num cinema, numa festa, num restaurante. Sua presença, antes tão gratificante, ultimamente só serve para me atrapalhar. Você jamais consegue estar comigo nas horas importantes, tem sempre algo complicado impedindo-o de chegar; mas sei de outras mulheres que dormem com você sem a menor dificuldade. Liguei para uma colega minha, noite dessas, para reclamar de mais uma das suas fugidas, e ela teve o desplante de dizer que não podia falar comigo porque estava na cama com você.Enfim, estou com olheiras, e é por sua culpa. Mas sei que necessito dos seus serviços, então lhe dou este ultimato. Ou você toma jeito e volta a me deixar em paz ou você afunda junto comigo.Atenciosamente.
(FERNANDA YOUNG)